sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Calmaria

A cidade dorme tranquila. Eu não.

O vento da tempestade passada ainda sopra em minha janela. No ritmo de meus suspiros, as últimas gotas soltam-se vagarosamente das folhas das árvores lá fora, como que resistindo contra a gravidade que as puxa no sentido oposto. Eu também resisto. Tento esquecer meu destino só por um minuto. A culpa não deixa. Com Rita repousando em meu peito, passo os meus olhos pelo quarto procurando algo que não está lá.Levanto-me e vou até a janela. Lá fora vejo alguns carros passando na rua que, durante o dia, não pára e também não anda. Estranhamente, nada acontece. Geralmente, meus ouvidos já ouviram de tudo nessa hora da noite. Hoje é o silêncio de Mercury City que me incomoda.

Resolvo dar uma volta, pra passar o tempo. Quem sabe alguns dedos de conhaque e conversa jogada fora preencham um pouco do vazio que povoa a minha mente. Desço a rua Sheer em direção à Jazz Square. Atravesso-a completamente até dobrar a esquina da rua Innuendo. É lá. Num dos cantos mais escuros da cidade que fica o Brady's.

O Brady´s é o tipo do lugar ao qual você não quer ir. Sujo, mal-cuidado, mal-frequentado. Ironicamente, é o lugar onde mais me sinto à vontade. Há algumas semanas a tal Loira Suicida matou um rascunho de detetive aqui dentro. Este é o Brady's. Se está procurando uma máscara para a culpa, ou um acelerador para seu instinto de autodestruição, veio ao lugar certo. O Brady's é o ponto de encontro das almas perdidas. Ao passar pela velha porta de vidro fumê, você sente todo o tipo de influência negativa que um local pode ter.Logo da entrada, se avista um palco acanhado ao fundo, onde algumas mulheres se apresentam de vez em quando. Cantando, dançando. As mesas da frente, umas 10 ao todo, são destinadas ao pôquer ou pequenas negociatas. No centro encontra-se o bar, ladeado por banquetas onde sentam-se os bêbados, boêmios e outros inofensivos cafajestes. À direita, o já citado palco, complementado com um velho piano. À esquerda, encostadas na parede, 5 mesas com divisórias entre uma e outra, como uma espécie de cubículo. É lá que acontecem os grandes esquemas, planos e negócios escusos.

Vejo os rostos de sempre. Logo, alguns demonstram estar pouco a vontade com minha presença. Não sou mais tão bem-vindo ao bar nos últimos tempos. Os que não estão incomodados por certo sabem que meu problema não é com eles. Não ligo nem um pouco para ladrões de banco, nem quadrilhas de caipiras que saem por aí assaltando casas.
Ando calmamente até o balcão e peço meu habitual copo de conhaque. Sento-me. Uma jovem morena senta-se ao meu lado. Não me incomodo nem em olhá-la. Mas após algum tempo, percebo que ela me olha fixamente. Incomodado, faço questão de demonstrar minha desaprovação.
- Não perca seu tempo, mulher. Não há nada aqui que você iria querer, acredite.
- Você é bonito.
Confesso que não esperava a franqueza, não aqui. Isso me desconcentra um pouco. Finjo que não ouço e retorno pro meu drinque.
- Minha mãe vive me dizendo pra tomar cuidado com assassinos, mas eu não me controlo.
- E onde está o assassino - pergunto com desdém.
- Não seja dissimulado. Eu te conheço, Pastor.
Deixa eu dizer uma coisa sobre a fama. É uma merda. Cada vez mais a escória da cidade me reconhece onde eu vou, isso me deixa puto. É bem mais fácil temer o desconhecido.
- Eu não ligo pra sua péssima fama. Eu gosto - Diz, com um sorriso no rosto.
Dou um último trago no conhaque e levanto-me para evitar o papo-furado. Dirijo-me até o lado esquerdo, rumo aos fundos do bar. Passo por uma fileira de trastes encostados no balcão sujo do Brady's. Sentados na última mesa, envoltos por uma fumaça densa de charuto barato estão Sammy e Quentin.

Os dois são as únicas pessoas com as quais mantenho contato frequente. Quentin é um bookie que aceita jogos de toda parte Oeste de Mercury City. Tem uma clientela bem diversa, que aposta regularmente. Se você procura apostar, vá ao Brady's e procure por Quentin. Futebol, Cavalos, torneios clandestinos de Pôquer e Boxe. Baixo e gordo, lembra muito um quero-quero, com as pernas finas e um topete que deixa todo o conjunto mais gozado.

Sammy é o assistente de Quentin. Muito calado e observador. É a perfeita antítese do patrão. Alto e magro, com um cabelo extremamente bem alinhado, com muito gel. Carrega um semblante tristonho e por vezes sombrio, impressão que é um pouco minimizada pelo avantajado nariz que brota-lhe do centro da face. Quando me aproximo da mesa, Quentin está falando.
- ...é o que te digo, Sammy. Mulheres com o tornozelo gordinho são péssimas de cama. Mas o contrário não é o ideal, meu amigo. As de tornozelo muito fino são até muito empolgadas e tudo, porém tem pouca técnica.
Enquanto fala, Quentin balança os dois braços, muito expansivo. Na mão direita segura o indefectível charuto e na mão esquerda o surrado caderninho de anotações, no qual anota as apostas.
- o que você procura é o meio-termo. nem muito grosso, nem muito fino. O meio-termo, Sammy. Esse é o esquema.
Quentin adora discutir amenidades.
- É ou não é, Raymond?
É estranho ouvir meu nome depois de tanto tempo.
Sammy desliza sobre o banco de dois lugares grudado ao chão, deixando um espaço para eu sentar. É o que faço.
- Não tenho idéia do que você ta falando, Quentin. - desvio o assunto rapidamente - Por acaso tem alguma novidade pra mim? Alguém gastando mais do que deveria?
- O de sempre, Ray. Nada fora do comum. - Quentin parece entediado com a pergunta - Por que diabos você não dá um tempo nessa de ser herói?
- Tem algo estranho rolando, Quentin. É latente, É palpável. Tem muito peixe pequeno andando com mais poder do que deveria e poderia por aí.
Sammy mantém-se imóvel, observando. Quentin aproxima-se de mim como se esperasse mais detalhes do que eu estava a dizer. Como eu não disse mais nada, disse ele.
- Olha, se quer minha opinião, Mercury City é a maior reunião de safados por metro quadrado. Se você for ficar sofrendo por antecipação, tá ferrado. Faça como eu, vai levando. Um dia de cada vez.
Quentin dá uma baforada densa e continua com o conselho.
- Ray, depois do que você fez com o último cara, ninguém vai se meter contigo por um bom tempo.
Enquanto termina de falar, o telefone do Brady's toca e Quentin levanta-se ligeiro para atender. Sammy permanece do mesmo jeito que estava no início da conversa. Consigo perceber o desconforto que sente com minha presença. Não o culpo. Enquanto Sammy toma uma golada de seu refrigerante de laranja, Quentin volta, animado.
- Simbora, Sammy. Arrumamos uma bolada na Bohemian Street. O velho McGurgeon abriu a carteira novamente.
Levanto-me para permitir que Sammy saia de seu lugar e retorno ao lugar de origem. Antes de sair, Quentin diz.
- Relaxa essa noite, Ray. Seu rebanho está na sombra por hoje. Até o Pastor tem direito à descanso.
Com um tapinha amigável no meu ombro, Quentin se afasta. Olho para trás e percebo a morena que continua me olhando fixamente do balcão. Remoendo os acontecimentos das últimas semanas, me deixo levar pelas últimas palavras de Quentin. Levanto-me calmamente, ajeito meu chapéu Panamá na cabeça e ando em direção à porta. No caminho, pego a morena pelo braço e sussurro em seu ouvido.
- Se é sua vontade, será minha essa noite e só essa noite. Sem perguntas ou maiores intimidades. De acordo?
Ela levanta-se sem pestanejar. Joga uns trocados sobre o balcão e gruda em meu braço como se fosse uma criança com medo de perder a mãe. Caminhamos juntos pelo bar rumo à rua. E depois rumo à qualquer Motel barato.
O vento já não sopra mais, as estrelas iluminam a noite de Lua nova. Nenhum carro à rua. Vou aproveitar a noite de calmaria. Deus sabe a tormenta que me aguarda.

A cidade dorme tranquila. A morena em meus braços também.

continua...

2 comentários:

biel disse...

Muito bom, gosto desse estilo de escrita, a leitura é fácil e imaginativa, venderia fácil Ton! Bora lançar um livro rapá!

Que a história continue!

Brady's - divina comédia com fly e milla, na minha concepção...hehehe

Marcio Brigo disse...

Cara se vc tem uma capacidade é a de evoluir! Este texto é da fato fantástico, referencial a esse universo tão rico que vc tanto gosta, os nomes dos personagnes das ruas e tudo tão bem costurado.
Ton, o Céu é o Limite.