sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Explicações

Antes de ler o texto abaixo, uma leve introdução. O Pastor é um personagem criado por mim em meados de 2006, com referências diversas, de Dirty Harry a Raymond Chandler, do cinema noir às histórias em quadrinhos. Antes de ler esse texto, é importante ler o primeiro ( O Pastor - o início) e o segundo (Dia comum) para entendimento da mitologia do personagem. No texto abaixo também cruzo referências citadas no texto Só Entretenimento, escrito por mim e do texto O Retorno, escrito brilhantemente pelo Rogério, dono da personagem Loira Suicida.
Espero que gostem bastante, já que pretendo utilizar muito os crossovers de personagens de amigos e também virão por aí muitas outras estórias do Pastor.
'Nuff Said

Calmaria

A cidade dorme tranquila. Eu não.

O vento da tempestade passada ainda sopra em minha janela. No ritmo de meus suspiros, as últimas gotas soltam-se vagarosamente das folhas das árvores lá fora, como que resistindo contra a gravidade que as puxa no sentido oposto. Eu também resisto. Tento esquecer meu destino só por um minuto. A culpa não deixa. Com Rita repousando em meu peito, passo os meus olhos pelo quarto procurando algo que não está lá.Levanto-me e vou até a janela. Lá fora vejo alguns carros passando na rua que, durante o dia, não pára e também não anda. Estranhamente, nada acontece. Geralmente, meus ouvidos já ouviram de tudo nessa hora da noite. Hoje é o silêncio de Mercury City que me incomoda.

Resolvo dar uma volta, pra passar o tempo. Quem sabe alguns dedos de conhaque e conversa jogada fora preencham um pouco do vazio que povoa a minha mente. Desço a rua Sheer em direção à Jazz Square. Atravesso-a completamente até dobrar a esquina da rua Innuendo. É lá. Num dos cantos mais escuros da cidade que fica o Brady's.

O Brady´s é o tipo do lugar ao qual você não quer ir. Sujo, mal-cuidado, mal-frequentado. Ironicamente, é o lugar onde mais me sinto à vontade. Há algumas semanas a tal Loira Suicida matou um rascunho de detetive aqui dentro. Este é o Brady's. Se está procurando uma máscara para a culpa, ou um acelerador para seu instinto de autodestruição, veio ao lugar certo. O Brady's é o ponto de encontro das almas perdidas. Ao passar pela velha porta de vidro fumê, você sente todo o tipo de influência negativa que um local pode ter.Logo da entrada, se avista um palco acanhado ao fundo, onde algumas mulheres se apresentam de vez em quando. Cantando, dançando. As mesas da frente, umas 10 ao todo, são destinadas ao pôquer ou pequenas negociatas. No centro encontra-se o bar, ladeado por banquetas onde sentam-se os bêbados, boêmios e outros inofensivos cafajestes. À direita, o já citado palco, complementado com um velho piano. À esquerda, encostadas na parede, 5 mesas com divisórias entre uma e outra, como uma espécie de cubículo. É lá que acontecem os grandes esquemas, planos e negócios escusos.

Vejo os rostos de sempre. Logo, alguns demonstram estar pouco a vontade com minha presença. Não sou mais tão bem-vindo ao bar nos últimos tempos. Os que não estão incomodados por certo sabem que meu problema não é com eles. Não ligo nem um pouco para ladrões de banco, nem quadrilhas de caipiras que saem por aí assaltando casas.
Ando calmamente até o balcão e peço meu habitual copo de conhaque. Sento-me. Uma jovem morena senta-se ao meu lado. Não me incomodo nem em olhá-la. Mas após algum tempo, percebo que ela me olha fixamente. Incomodado, faço questão de demonstrar minha desaprovação.
- Não perca seu tempo, mulher. Não há nada aqui que você iria querer, acredite.
- Você é bonito.
Confesso que não esperava a franqueza, não aqui. Isso me desconcentra um pouco. Finjo que não ouço e retorno pro meu drinque.
- Minha mãe vive me dizendo pra tomar cuidado com assassinos, mas eu não me controlo.
- E onde está o assassino - pergunto com desdém.
- Não seja dissimulado. Eu te conheço, Pastor.
Deixa eu dizer uma coisa sobre a fama. É uma merda. Cada vez mais a escória da cidade me reconhece onde eu vou, isso me deixa puto. É bem mais fácil temer o desconhecido.
- Eu não ligo pra sua péssima fama. Eu gosto - Diz, com um sorriso no rosto.
Dou um último trago no conhaque e levanto-me para evitar o papo-furado. Dirijo-me até o lado esquerdo, rumo aos fundos do bar. Passo por uma fileira de trastes encostados no balcão sujo do Brady's. Sentados na última mesa, envoltos por uma fumaça densa de charuto barato estão Sammy e Quentin.

Os dois são as únicas pessoas com as quais mantenho contato frequente. Quentin é um bookie que aceita jogos de toda parte Oeste de Mercury City. Tem uma clientela bem diversa, que aposta regularmente. Se você procura apostar, vá ao Brady's e procure por Quentin. Futebol, Cavalos, torneios clandestinos de Pôquer e Boxe. Baixo e gordo, lembra muito um quero-quero, com as pernas finas e um topete que deixa todo o conjunto mais gozado.

Sammy é o assistente de Quentin. Muito calado e observador. É a perfeita antítese do patrão. Alto e magro, com um cabelo extremamente bem alinhado, com muito gel. Carrega um semblante tristonho e por vezes sombrio, impressão que é um pouco minimizada pelo avantajado nariz que brota-lhe do centro da face. Quando me aproximo da mesa, Quentin está falando.
- ...é o que te digo, Sammy. Mulheres com o tornozelo gordinho são péssimas de cama. Mas o contrário não é o ideal, meu amigo. As de tornozelo muito fino são até muito empolgadas e tudo, porém tem pouca técnica.
Enquanto fala, Quentin balança os dois braços, muito expansivo. Na mão direita segura o indefectível charuto e na mão esquerda o surrado caderninho de anotações, no qual anota as apostas.
- o que você procura é o meio-termo. nem muito grosso, nem muito fino. O meio-termo, Sammy. Esse é o esquema.
Quentin adora discutir amenidades.
- É ou não é, Raymond?
É estranho ouvir meu nome depois de tanto tempo.
Sammy desliza sobre o banco de dois lugares grudado ao chão, deixando um espaço para eu sentar. É o que faço.
- Não tenho idéia do que você ta falando, Quentin. - desvio o assunto rapidamente - Por acaso tem alguma novidade pra mim? Alguém gastando mais do que deveria?
- O de sempre, Ray. Nada fora do comum. - Quentin parece entediado com a pergunta - Por que diabos você não dá um tempo nessa de ser herói?
- Tem algo estranho rolando, Quentin. É latente, É palpável. Tem muito peixe pequeno andando com mais poder do que deveria e poderia por aí.
Sammy mantém-se imóvel, observando. Quentin aproxima-se de mim como se esperasse mais detalhes do que eu estava a dizer. Como eu não disse mais nada, disse ele.
- Olha, se quer minha opinião, Mercury City é a maior reunião de safados por metro quadrado. Se você for ficar sofrendo por antecipação, tá ferrado. Faça como eu, vai levando. Um dia de cada vez.
Quentin dá uma baforada densa e continua com o conselho.
- Ray, depois do que você fez com o último cara, ninguém vai se meter contigo por um bom tempo.
Enquanto termina de falar, o telefone do Brady's toca e Quentin levanta-se ligeiro para atender. Sammy permanece do mesmo jeito que estava no início da conversa. Consigo perceber o desconforto que sente com minha presença. Não o culpo. Enquanto Sammy toma uma golada de seu refrigerante de laranja, Quentin volta, animado.
- Simbora, Sammy. Arrumamos uma bolada na Bohemian Street. O velho McGurgeon abriu a carteira novamente.
Levanto-me para permitir que Sammy saia de seu lugar e retorno ao lugar de origem. Antes de sair, Quentin diz.
- Relaxa essa noite, Ray. Seu rebanho está na sombra por hoje. Até o Pastor tem direito à descanso.
Com um tapinha amigável no meu ombro, Quentin se afasta. Olho para trás e percebo a morena que continua me olhando fixamente do balcão. Remoendo os acontecimentos das últimas semanas, me deixo levar pelas últimas palavras de Quentin. Levanto-me calmamente, ajeito meu chapéu Panamá na cabeça e ando em direção à porta. No caminho, pego a morena pelo braço e sussurro em seu ouvido.
- Se é sua vontade, será minha essa noite e só essa noite. Sem perguntas ou maiores intimidades. De acordo?
Ela levanta-se sem pestanejar. Joga uns trocados sobre o balcão e gruda em meu braço como se fosse uma criança com medo de perder a mãe. Caminhamos juntos pelo bar rumo à rua. E depois rumo à qualquer Motel barato.
O vento já não sopra mais, as estrelas iluminam a noite de Lua nova. Nenhum carro à rua. Vou aproveitar a noite de calmaria. Deus sabe a tormenta que me aguarda.

A cidade dorme tranquila. A morena em meus braços também.

continua...

Dia comum

A maldade existe. Infame. Injusta. A maldade persiste.

Naquele canto sujo da cidade, àquela hora da madrugada, é claro que não poderia acontecer algo bom. As más intenções são como o vapor que sobe das tampas dos bueiros quando a noite esfria.

Ela caminha. A passada ilustra o medo. Apressada. E ela caminha. Rumo incerto à destino algum..

A uma esquina dali, ele observa toda a ação. Lacaio imundo. Mente perturbada pelas drogas. Disposição para matar. Disposição para morrer.

Ela se aproxima cada vez mais.

Ele aguarda. Ansioso pelo bote.

10. 5 metros. Ele já está em posição de ataque. Que tal se eu me juntar a brincadeira?

Com um salto, deixo o telhado sobre o qual eu me esgueirava. Surpreendido, o meliante deixa cair sua arma. A moça foge, assustada. Com um soco, o derrubo para trás, perto o suficiente para que ele role e alcance sua arma. Com agilidade surpreendente, ele faz um giro e mira em minha cabeça. Displicente, faz pouco caso da situação:

- É você, não? – diz com indício de sorriso no rosto

- Depende.

- Você, é aquele cara que ta assustando todo mundo por aí. O Fantasma. É você não é não?

- Se você quer acreditar que sim. Mas Fantasma já tem dono, eu prefiro Pastor.

- Pastor? Cara, isso ai não mete medo em ninguém. – A cada palavra ele dá um passo em minha direção. Um erro primário. Com um movimento rápido eu consigo dar um chute em seu pulso e ele solta a arma novamente. Dessa vez eu me adianto, pisando em cima do revólver. Abaixo-me calmamente para analisá-lo. É uma Ruger Mark I. Uma arma bem decente para um ladrãozinho imundo como esse. É óbvio que alguém mais poderoso está municiando a ralé da cidade. E é óbvio também que eu estou começando a incomodar. Ótimo.

Ao invés de estar apavorado, o vagabundo sorria ainda mais, como que inebriado de adrenalina. A mente insana funciona de maneira assustadora.

- HA HA HA HA HA HA HÁ! O Pastor me pegou! Que medo! E agora, você vai ler um trecho da Bíblia e me levar para o inferno?

- Pessoalmente não. Mas eu conheço um atalho. – Lentamente puxo Rita, minha Smith & Wesson 44, do coldre. Mas antes que pudesse fazer o disparo, o ladrão saca uma arma escondida na meia e dispara algumas vezes. Sinceramente, ainda não me acostumei com os tiros. As balas não me perfuram, óbvio, mas mesmo assim eu sinto uma dor irritante, algo parecido com a picada de uma vespa, só que mais forte. E isso me irrita bastante.

Ao ver os projéteis caindo após baterem em meu corpo, finalmente ele enxerga a realidade. E a realidade assusta. Tremendo, larga a arma e cai de joelhos.

- Meu Deus! – Exclama

- Tente de novo.

O estampido de Rita cala qualquer tipo de lamento por parte do ladrão. Seu caso está encerrado. Sorte dele. O meu está longe de ter fim.

A esperança existe. Incompreensível. Inexplicável. A esperança persiste.

O Pastor - O Início

Nada. É tudo o que eu ouço neste momento. É o silêncio mais insuportável que alguém poderia imaginar. O cano fumegante de Rita, minha Smith & Wesson Triple Lock .44, me lembra de minha sina, do meu Carma.

- Se você quer saber, não é de hoje que meu instinto assassino espanta as pessoas. Aos 9, matei um gato com uma fúria que só não era maior que o sorriso que carregava no rosto naquele momento. O espanto dos parentes já não foi tão grande quando tinha 14 e esmurrei um garoto que ousou caçoar de mim na escola. Os professores diziam que o exemplo vinha de casa, até hoje tenho dúvidas. Eu nunca fui covarde como meu pai. O imbecil bebia todo o dinheiro da família. Em casa, espancava minha mãe até ela desmaiar. Quando fiz 18, decidi que aquilo tinha que acabar. Na oportunidade que se seguiu, meu pai só teve tempo de erguer a mão até a bala do meu 44 morrer no seu peito. Pra garantir, tripliquei o serviço, cravando uma bala em cada olho do miserável.

- Esperava somente o agradecimento de minha mãe, porém, recebi um tapa na face que doeu mais do que se ela tivesse me atingido com uma faca afiada. Fui expulso de casa no mesmo instante. Naquela noite, não consegui dormir. Andei de bar em bar procurando amenizar minha agonia, porém só encontrei o fundo do copo. No último deles, arrumei uma confusão sem precedentes. Enquanto me atracava com 2 ou 3 brutamontes, não percebi o elemento escondido atrás de mim, que cravou uma bala de 38 na minha nuca - ou melhor, tentou. A bala bateu em meu crânio e rachou-se como se feita de giz. Todos fugiram assustados com a cena. Eu também tentei fugir. A minha primeira medida foi tentar de novo. peguei minha S & W .44 e atirei contra meu próprio peito. Qual foi minha surpresa ao ver o mesmo acontecer. Não sei se foi o excesso de bebida, mas aquilo me deu um novo propósito de vida. Juro que até enxerguei a vontade de Deus naquilo. Desde então tenho me dedicado a caçar persistentemente qualquer assassino que encontro pela frente. Uma vendeta alucinada, tentando preencher o vazio que me completa. Ja fui ferido algumas vezes. Nunca por balas. Não entendo até hoje o porquê de ter o corpo "fechado" contra projéteis. Nem se o terei até o fim da minha vida.

Sei que estou condenado. Quando Ele resolver me levar, tenho certeza que não vai ser para um bom lugar. Mas é o trabalho d’O Pastor. Sacrificar-se para o bem do rebanho, conduzindo-o para seu rumo correto. Não, não penso que sou uma espécie de Messias, sou apenas uma conseqüência do caos existente no mundo. Dizer que Deus escreve certo por linhas tortas é bobagem, lugar comum. Na verdade o ser humano é que não sabe ler. Se me arrependo do que faço? Claro. Mas alguém tem que fazer o trabalho sujo, não? Estou preso numa redoma de falsidade e mediocridade que eu mesmo criei, estive aqui ontem, hoje; amanhã pago por isso.

- Agora, seu espanto foi algo comum. Você descarregou toda sua munição contra meu peito e nada aconteceu. Quem sou eu? Eu sou O Pastor e creio que respondi a questão que me fez antes de eu enfiar uma bala em sua cabeça. Pena você não ter me ouvido, estava muito a fim de um papo hoje. Quem sabe na próxima.

É o silêncio mais insuportável que alguém poderia imaginar. É tudo o que ouço neste momento. Nada.